O poder fulminante das redes sociais

A frase racista que derrubou o jornalista William Waack, da Globo, mostra que as redes sociais são, cada vez mais, voz altamente influente no debate público.


No início da tarde da quarta-feira 8, começou a viralizar nas redes sociais um vídeo em que o jornalista William Waack, de 65 anos, aparece minutos antes de entrar no ar ao vivo de Washington, em 9 de novembro do ano passado, para comentar a eleição do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos.

No vídeo, o jornalista fica incomodado com o barulho de uma buzina na rua. “Tá buzinando por que, seu m… do c…?”, reage Waack. Em seguida, ele parte do xingamento chulo para uma frase racista: “Não vou nem falar porque eu sei quem é. É preto. É coisa de preto”, afirma, em tom de brincadeira, ao seu convidado no estúdio, o também jornalista Paulo Sotero.

Em menos de sete horas circulando nas redes, o vídeo de um ano atrás levou a Rede Globo a tirar Waack da bancada do Jornal da Globo, que apresentava havia doze anos.

A trajetória do vídeo começou pelas mãos de Diego Pereira, que trabalhou na Globo até janeiro passado. Ele diz ter vazado, com a ajuda de um amigo (ambos são negros), as imagens em grupos de WhatsApp.

Às 14h28 de quarta-feira, o vídeo foi postado no Twitter pelo roteirista Jorge Tadeu, que tem cerca de 5 700 seguidores, e explodiu: 4000 compartilhamentos nessa única mensagem. Ao longo do dia, houve mais de 500 000 buscas por “William Waack” no Google no Brasil. A pedido de VEJA, a consultoria SQI analisou 50 000 menções na semana ao nome do jornalista: 90% eram negativas.

O silêncio da Globo durou algumas horas. Às 21h24, a emissora comunicou o afastamento de Waack da bancada do telejornal “até que a situação esteja esclarecida”. Em um trecho da nota oficial, reconhece que na gravação “Waack (…) faz comentários, ao que tudo indica, de cunho racista”. Mais tarde, o mesmo texto foi lido, na abertura do próprio Jornal da Globo, pela substituta do apresentador, Renata Lo Prete.

A velocidade estonteante da queda é um testemunho do poder fulminante que as redes sociais adquiriram. Nunca, na história da humanidade, houve um meio com potencial para capturar a atenção de milhões, até bilhões, de pessoas em questão de minutos. Curiosamente, as redes sociais não surgiram com o propósito atual e — acredite — precedem o aparecimento da própria internet. A primeira rede social nasceu em 1959, criada por dois estudantes de engenharia da Universidade Stanford, no Vale do Silício, e colocou em contato 49 mulheres e 49 homens — a coisa resultou em alguns namoros e até um casamento.

Quando Mark Zuckerberg, então estudante da Universidade Harvard, imaginou o Facebook, em 2004, seu objetivo primário era apenas aproximar os universitários das melhores instituições de ensino do planeta. Dois anos depois, quando o Twitter foi criado, a intenção era que as mensagens de 140 caracteres fossem apenas uma troca banal de informações entre amigos. “Quando pensamos o Instagram pela primeira vez, em 2010, a ideia era que se tornasse um tipo de álbum de família virtual. Contudo, com o tempo ele acabou por ganhar dimensões bem mais ambiciosas, tendo papel em auxiliar indivíduos a se comunicar durante catástrofes ou quando sob a censura de uma ditadura, e daí em diante”, diz o brasileiro Michel Krieger, um dos fundadores do app de fotos e vídeos.

Com a enorme dimensão que assumiram, as redes sociais passaram a disseminar uma hipervigilância que faz com que manifestações de intolerância, antes aceitáveis ou negligenciadas, fiquem cada vez menos toleráveis — como aconteceu com o comentário racista de Waack. Entre os assuntos que mais mobilizam as redes estão justamente as questões raciais. Entre abril e junho do ano passado, uma pesquisa da agência de publicidade nova/sb analisou mais de 500 000 menções a algum tipo de preconceito no Facebook, no Twitter e no Instagram. No ranking da intolerância, a liderança ficou com o racismo (97,6% das citações eram negativas). Em seguida, aparecem ideologia política (97,4%), classe social (94,8%), aparência física (94,2%) e homofobia (93,9%).

As redes sociais têm sido implacáveis com tudo o que possa parecer racismo. Recentemente, a Santher, fabricante de toalhas de papel, provocou indignação com a campanha de lançamento de um produto — um papel higiênico chique na cor preta. Para divulgar a novidade, postou uma peça de propaganda com a atriz Marina Ruy Barbosa embalada no próprio papel, acompanhada da frase “black is beautiful”, slogan antirracista popularizado nos Estados Unidos. Considerar que essa peça publicitária era um estímulo ao ódio racial é um exagero evidente, mas usar a palavra de ordem que pretendia levantar a autoestima dos negros para vender papel higiênico é, sim, potencialmente insultuoso — e as redes sociais não perdoaram. Na dúvida, a fabricante tirou a campanha do ar. E, com medo do estrago em sua imagem de boa-moça, a garota-propaganda ruiva às pressas pediu desculpas. Onde? Nas redes sociais, ora.

As más condutas sexuais também estão entre os temas que galvanizam as redes sociais. O caso de Harvey Weinstein, o poderoso produtor de Hollywood que já foi denunciado por assédio sexual por mais de 100 mulheres (e ainda contando), só tomou essa proporção e resultou em sua condenação sumária ao ostracismo graças ao poder dos tribunais digitais — benigno e desejável em episódios assim — de amplificar a indignação geral. Há duas semanas, quem provou dessa sede implacável de justiça foi o astro Kevin Spacey, ganhador de dois Oscar e protagonista de House of Cards, uma das séries mais cultuadas da atualidade. A entrevista na qual o ator Anthony Rapp acusou Spacey de ter tentado abusar dele quando tinha apenas 14 anos refere-se a fatos do longínquo ano de 1986. Mas, na visão do mundo contemporâneo, comportamentos reprováveis assim são desvios que não prescrevem. Em 24 horas, o Emmy cancelou um prêmio pelo conjunto da obra de Spacey, e a Netflix suspendeu a produção de House of Cards — mais tarde, anunciou que não mais manteria a parceria com o ator.

É fácil entender por que os protestos digitais se referem a racismo, homofobia e assédio sexual: as redes sociais tornaram-se o canal que dá voz justamente a grupos que, antes, não dispunham da atenção pública — ou seja, negros, gays, mulheres. É um aspecto altamente positivo das redes sociais, que ajudam a democratizar o espaço público e dão oportunidade de expressão a uma multiplicidade de vozes. Mas há, também, um lado sombrio aí. O caso do ator de House of Cards sintetiza como as redes podem exercer o papel de tribunal para o bem ou para o mal. A condenação rápida e peremptória de Spacey foi, decerto, justíssima: é impensável aceitar ou acobertar esse tipo de conduta no mundo atual. Mas a coisa tendeu a ganhar ares de justiçamento na medida em que Spacey passou de perpetrador de abusos claramente delineados pelos relatos de seus acusadores a um saco de pancadas no tribunal digital.

De fato, não se deve perder de vista que as redes sociais não são uma entidade com voz autônoma e capacidade infalível de julgar. Elas, aliás, não são propriamente a causa dessa nova mentalidade de tolerância zero com os erros cometidos pelas figuras públicas, mas apenas uma caixa de ressonância poderosa, poderosíssima. Como tal, podem servir ao fim legítimo e louvável de amplificar a voz dos que se indignam com o racismo, o sexismo, a desfaçatez dos políticos. No caso de William Waack, é justa a reação dos usuários das redes, bem como os efeitos que ela desencadeou. Mas, quando, por contraste, essa caixa passa a ressoar a inverdade, a caça às bruxas, ela se torna um instrumento de barbárie não muito diferente dos linchamentos por turbas descontroladas — a diferença é que, em vez de derramarem sangue, arrasam reputações e ideias.

No mundo das empresas e dos negócios, as redes sociais têm tido impacto imediato. Grandes anunciantes, empresas de comunicação e gigantes do entretenimento estão aprendendo, na marra, que qualquer demora ou vacilo em dar resposta aos anseios de justiça dos usuários das redes sociais será denunciado como endosso à postura ou ao comportamento condenado. Nos Estados Unidos, em menos de 24 horas a poderosa multinacional de higiene e cosméticos Unilever fez um mea-culpa público — por meio do Facebook, é claro — pela campanha de um sabonete de sua marca Dove que mostrava a imagem de uma mulher negra tirando sua blusa e revelando outra modelo, de pele branca, por baixo da roupa. O objetivo era mostrar que o produto servia para todos os tipos de pele (a modelo branca, por sua vez, tirava a blusa e se convertia em morena), mas, com boa dose de distorção, divulgou-se que a Dove julgava desejável que mulheres negras mudassem de pele. Racismo! Foi esse o veredicto imediato das redes sociais. Resultado: o anúncio entrou nas redes num dia e saiu no outro.

 

Fonte: VEJA.

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