Anatel pode ser ‘polícia da Internet’, diz presidente da agência

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Mundo virtual receberá destaque na gestão de Carlos Manuel Baigorri, cujo mandato vai até novembro de 2026


O economista Carlos Manuel Baigorri, 38 anos, assumiu a presidência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em abril, após quase treze anos como servidor de carreira do órgão. Nesta entrevista, ele fala sobre o foco da Anatel para o próximo ano nas áreas da concorrência da telefonia e internet móveis. A agência, segundo ele, vai cobrar das grandes empresas de telecomunicações que cedam espaços ociosos na rede para empresas menores que estão chegando ao mercado dominado por Claro, TIM e Vivo. “É preciso garantir que o espectro ocioso possa estar disponível para uma empresa que queira usar”, observa.

A agência mantém o foco também na implantação da infraestrutura da rede 5G. Outro tema relevante será o início da discussão sobre o fim das concessões de telefonia fixa previsto para 2025.

Conta que a experiência não o impediu de ter sido pego “de surpresa” durante as eleições por uma série de decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) para retirar da internet notícias falsas e conteúdos antidemocráticos. “Identificaram que havia sites, plataformas e aplicativos que estavam sendo usados para atacar a democracia e falaram: ‘Anatel, vai lá lá e pare com isso’. Fomos lá e paramos”, afirma.

A surpresa, porém, deve ceder lugar a uma atuação mais ativa no combate a pirataria e crimes cometidos na rede. A Anatel deve atuar, agora, como uma ‘Polícia da Internet’. “A Anatel pode ter esse papel”, diz.

O mundo virtual receberá destaque na gestão de Baigorri, cujo mandato vai até novembro de 2026. A discussão sobre a regulamentação de áreas da economia digital passará pelo crivo da agência, incluindo a possível elaboração de um marco legal das plataformas —tema central para o futuro Ministério das Comunicações no governo Lula. Não à toa, a agência contratou a Universidade de Brasília (UnB) para elaborar um documento com propostas para a “ressignificação do papel do Estado no que diz respeito à transformação digital”, que ele pretende entregar ao governo em 2023.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista do presidente da Anatel.

Quais são as prioridades na agenda da Anatel para 2023?

São diversas as prioridades e, para garantir que a gente não se perca, cada um dos conselheiros da Anatel está olhando para uma delas. Uma das grandes prioridades é continuar a implementação do 5G, pauta cuidada pelo conselheiro Moisés Queiroz Moreira. Ele também é responsável pela pauta do combate à pirataria, assunto que a Anatel já vem estudando há muito tempo e quer reforçar. Temos uma posição muito forte e queremos aumentá-la, com foco no combate à pirataria na internet. O que é isso? É tanto a venda de equipamento não certificado, não homologado, quanto a prestação clandestina de serviço de TV por assinatura pela internet. O conselheiro Moisés visitou Portugal e Espanha para entender como implementaram o modelo de combate à pirataria deles para fazermos algo parecido no Brasil.

Como vê o desejo das operadoras em cobrar das plataformas pela implantação da rede 5G?

Na minha visão, é uma questão muito mais comercial entre as empresas. Não há qualquer perspectiva da Anatel se imiscuir nessa relação. É claro que se vier uma definição legislativa, uma alteração de política regulatória, de política pública, podemos fazer isso. O principal argumento das operadoras de telecomunicações é que as plataformas ocupam uma grande parcela da rede e impõe muitos custos. Mas, ao mesmo tempo, as empresas dão passagem para as aplicações das plataformas. Elas precisam se resolver. Ninguém é hipossuficiente ali, ninguém precisa da tutela do Estado, na minha opinião.

A Anatel pretende atuar na regulação da economia digital? 

Estamos desenvolvendo uma agenda junto com a academia. O conselheiro Alexandre Freire vai assumir a presidência do Centro de Altos Estudos em Telecomunicações (Ceatel) da Anatel, no qual há um grande debate sobre a revisão mais ampla do marco regulatório para um reposicionamento do papel do Estado. Passamos 25 anos com o Estado muito focado na expansão das redes. A realidade do mercado mudou. Hoje há plataformas [digitais], inteligência artificial, etc. O Ceatel, por meio de uma parceria com a Universidade de Brasília (UnB), faz um grande estudo acadêmico para propor uma nova abordagem do Estado, uma ressignificação do papel do Estado no que diz respeito à economia digital e à transformação digital.

Como avalia a discussão a respeito do enquadramento ou não das plataformas digitais como empresas de mídia tradicional?

É uma discussão que eu não conheço muito bem. Mas está no PL 2.630/2020, do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que traz a questão da remuneração, responsabilidade editorial. Eu entendo que é um debate que acontece no mundo todo e que é a linha mesmo [de discussão].

Durante muito tempo, se teve uma visão dicotômica de que existia o mundo real e que aquilo que acontecia na internet era diferente desse mundo real. É como se a internet fosse uma terra sem lei, na qual você pode fazer qualquer coisa, e o mundo real é altamente regulado. Com a digitalização da economia, da democracia e da própria cidadania, parece-me que essa dicotomia não faz mais sentido. Falamos de marketplaces que, muitas vezes, falam: ‘Olha, eu não tenho responsabilidade pelo que está sendo vendido. Eu sou só um intermediário’. No meu entendimento, isso não faz sentido. Se uma loja física está vendendo algo irregular, como drogas, a polícia vai lá e prende o cara e a droga. Se isso estiver sendo vendido na internet, o papel do Estado é o mesmo.

A criação de um marco legal das plataformas digitais envolve o futuro governo, o Congresso e a Anatel. Como será a interlocução?

A regulação das plataformas digitais é uma questão que pode entrar de forma prioritária [na agenda da Anatel]. Esperamos uma definição seja de política pública, seja de alteração legislativa. Mas enquanto isso não acontece, continuamos com o nosso trabalho, com as nossas competências previstas na LGT (Lei Geral das Telecomunicações), que estão intrinsecamente ligadas ao mundo digital. As plataformas são parte de um ecossistema digital que a Anatel regula, que inclui como parte pesada as redes de telecomunicações. A Anatel já atua, não diretamente nas plataformas. Mas, por exemplo, um assunto muito premente quando falamos de plataformas digitais é a questão da desinformação, das fake news. O TSE teve um papel muito central nesse combate à desinformação durante as eleições. Todas as determinações que o TSE e o STF emitiram de combate à desinformação foram implementadas e efetivadas por meio da Anatel. Então, já temos um papel muito relevante e aguardamos uma definição de política pública, de alteração legislativa, para que possamos continuar fazendo o nosso trabalho.

A impressão é que o governo eleito quer uma coisa e o Congresso, outra. Do ponto de vista da Anatel, como um acordo para um marco legal das plataformas pode ser amarrado? 

A Anatel é cumpridora de lei. Cumpridora de política pública. Se for chamada para o diálogo, vai dialogar. Se não for chamada, vai aguardar a definição. Eu concordo com você que há várias peças se movendo. Mas, no final do dia, cabe ao governo junto com o Congresso definir o que será prioridade, o que será feito. Quando isso for definido, vamos cumprir. Somos um órgão técnico e estamos aqui para colaborar com a nossa visão técnica sobre a rede de telecomunicações, o ecossistema digital e as inter-relações entre esses agentes.

Como você avalia este ‘PL da Plataformas Digitais’?

Pelo que eu entendo, o objetivo do projeto de lei é expandir uma atuação que nós já fazemos no contexto do Plano Geral de Metas de Competição, que é um arcabouço regulatório que prevê as simetrias regulatórias ou medidas regulatórias assimétricas para promoção da competição. Fazemos isso no mercado de telecomunicações. Como? Definindo mercado relevante, identificando empresas com poder de mercado e se esse poder representa risco de abuso. Depois, são definidas medidas regulatórias específicas para as empresas de forma a mitigar os riscos de abuso de poder de mercado. O PL traz a mesma lógica desse arcabouço regulatório, só que para as plataformas. Pelo que entendo, o projeto não está focado em conteúdo, em desinformação e nada disso. Está focado muito em conter e mitigar riscos de abuso de poder de mercado no contexto das plataformas digitais. É algo que a gente já faz no nosso dia a dia no contexto de telecomunicações. Se o PL for aprovado, conseguiremos fazer isso [de mitigar abusos] muito rapidamente,  pois já é o nosso DNA.

Para superar a dicotomia entre mundo real e digital, a Anatel seria instada a atuar como ‘Polícia na Internet’?

Foi isso que o TSE e o STF cobraram de nós durante as eleições. Eles  identificaram que havia sites, plataformas, aplicativos que estavam sendo usados para atacar a democracia e falaram: ‘Anatel, vai lá lá e pare com isso’. Fomos lá e paramos. Se o STF determinar o desbloqueio de uma rodovia, ele manda a Polícia Federal. No caso de condutas na internet quem foi chamado para resolver foi a Anatel. Então, sim, a Anatel pode ter esse papel [de polícia]. Estamos aqui para apoiar a democracia e apoiar essas decisões.

Mas para fiscalizar as plataformas digitais é preciso uma estrutura específica? 

Não, a nossa estrutura já comporta esse tipo de solução. É claro que nesse processo eleitoral a gente foi pego meio de surpresa, porque as decisões eram de cumprimento imediato. Nos viramos do jeito que deu e conseguimos cumpri-las. É claro que dessa experiência, tiramos aprendizados de coisas que podemos melhorar no futuro para que o processo seja mais fluido e mais efetivo. Vejo essa demanda pela sociedade de um papel mais atuante da Anatel no que diz respeito a internet, as plataformas. É uma demanda que vai crescer e a gente está aqui à disposição.

Há planos para melhorar a gestão da concorrência nas telecomunicações? Há a questão da arbitragem contra a Oi…

concorrência e a competição no setor de telecomunicações é uma obsessão da Anatel. Criamos o Plano Geral de Metas de Competição, que está indo para sua terceira versão. Ele prevê uma renovação a cada quatro anos e é uma regulamentação referência mundial. Nessa questão da arbitragem, que envolve a venda da operação da Oi para Vivo, Claro e TIM estamos acompanhando o impacto que pode ter na situação econômica e financeira da Oi. Trata-se de uma concessionária de telefonia fixa que precisa manter a sua saúde financeira para que a prestação de serviço não corra risco. A empresa saiu da recuperação judicial, o que é um sinal de recomposição de sua saúde financeira, mas tem muitos quebra-molas no caminho da Oi. Tem essa arbitragem com a Vivo, Claro e TIM, assim como a arbitragem com a própria União. Vamos monitorar para estar sempre o mais adequado, sabendo se há algum risco de continuidade da prestação do serviço público que é o telefone fixo.

Haverá ‘remédios’ regulatórios para descentralizar o mercado de telefonia móvel?

O grande foco agora é, justamente, fazer com que os novos players que entraram no edital de telefonia móvel — a Liga Telecom, Cloud2U, Brisanet e a Winity — consigam efetivamente concorrer no mercado, que possam trazer uma nova dinâmica para o mercado de telefonia celular.

Há três, quatro anos, tínhamos cinco empresas no mercado de telecomunicações. Além das três que temos hoje, tinha a Nextel e a Oi. A Nextel foi comprada pela Claro e a Oi foi comprada pela Vivo, Claro e TIM. Isso gerou concentração muito significativa do mercado nos últimos anos.

Essa concentração aumenta o risco de abuso de poder de mercado e o nosso papel é tentar reduzir tal risco, seja por meio de colocar remédios regulatórios, seja por meio da introdução de novos competidores no mercado. É nosso foco e obsessão a concorrência nesse sentido de garantir o mercado o mais competitivo possível. Fomos muito bem sucedidos em fazer isso na banda larga fixa. Você precisa lembrar que há dez anos, quando o primeiro Plano Geral de Metas de Competição foi aprovado, o foco era a banda larga fixa. A gente tinha as concessionárias de telefonia fixa com 95% do mercado, velocidades muito baixas, qualidade muito ruim e pouca capilaridade. Dez anos depois de várias medidas pró-competitivas, de compartilhamento de infraestrutura, de redução de custo de novos entrantes, temos um fenômeno brasileiro, reconhecido internacionalmente, que é a participação das empresas de pequeno porte. São mais de 20 mil empresas participando no mercado [de banda larga fixa], atingindo mais de 60% do mercado hoje.

Como fazer isso na banda larga móvel?

Quando olhamos para a banda larga móvel, vemos que o mercado passou por um processo de concentração muito grande nos últimos anos com a aquisição da Nextel e da Oi. Agora, nosso foco certamente vai ser em promover a competição no mercado móvel. O foco [para desconcentrar] deve ser, com certeza, o espectro [frequências], que é o insumo essencial para prestação de serviço. Devemos focar no compartilhamento de espectro, garantir o uso eficiente do espectro, que não fique ocioso, porque muitas vezes uma empresa compra o espectro, mas não usa. É preciso garantir que o espectro ocioso possa estar disponível para uma empresa que queira usar. Então, garantir que tanto as redes que já estão instaladas quanto o espectro, sejam compartilhados de forma a aumentar a eficiência do nosso mercado.

Como evitar que pequenas operadoras não sejam ‘engolidas’?

A gente consegue fazer isso, pois todo processo de fusão e aquisição precisa de anuência da Anatel. Há condições regulatórias para autorizar ou não. Hoje, temos uma regulamentação que fala do limite de espectro que cada empresa pode ter e todas [as grandes], após a compra da Oi, já estão no seu limite. É muito difícil imaginar uma nova rodada de consolidação no mercado de telefonia em razão de todos já estarem no limite de concentração.

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