Poucos eventos tiveram efeitos tão poderosos e profundos no setor da moda quanto a pandemia do coronavírus.
A crise sanitária, antes apontada como passageiro, tem modificado a forma de consumir. Após meses em isolamento, homens e mulheres têm cada vez mais optado por peças confortáveis e duráveis.
“O home office tem alterado a nossa relação com a moda”, afirma a pesquisadora e consultora de estilo e branding, Renata Abranchs.
“Quando pensamos no ‘indoor’, cresce a busca por conforto e por tecnologias que facilitem a manutenção e a respiração da pele. E quando falamos em roupa confortável, não é sobre usar pijama: é sobre malharia, elasticidade, e sobre ter um corpo mais livre.”
E isso não é novidade. Há alguns anos o padrão de beleza tem mudado. Peças mais soltas, como pantacourts e blusões, têm conseguido se manter entre as principais tendências, mesmo com o passar dos meses. Mas quem ainda não tinha colocado o conforto como prioridade percebeu, durante a quarentena, os benefícios de trabalhar, estudar ou simplesmente passar o dia com peças que não prejudicam a mobilidade.
A analista de seguros Lisa Alarcon, 52, que já era adepta do estilo confortável e casual, diz que é possível ter essa prioridade sem deixar de lado o “lado fashion”. Ela conta que, mesmo quando está em casa, no frio, raramente usa moletom – ela prefere uma calça legging e um cardigan, por exemplo, para se aquecer. “No dia a dia, para trabalhar, uso pantalonas, pantacourts, camisas leves e tricô.”
Pensando justamente na quarentena, algumas marcas lançaram linhas de roupas “comfy”- termo usado na moda para referir a peças confortáveis. A modelo brasileira Júlia Muniz, 22, que atualmente mora na Austrália, diz que tem notado cada vez mais marcas que têm como foco o conforto. “Estou sempre viajando, e o conforto para mim vem antes do estilo. É incrível unir os dois.”
Consumo consciente
A possibilidade de acompanhar mais “vitrines” em uma única tela fez crescer a preocupação com a origem das peças, uma vez que é possível comparar marcas e ler mais sobre o assunto nos sites que promovem uma moda sustentável.
Lisa Alarcon afirma que adotou um consumo mais consciente nos últimos quatro anos, quando adotou uma dieta semivegetariana. “Não uso mais couro, lã de ovelha e seda. As pessoas estão cada vez mais se conscientizando sobre o meio ambiente”, diz ela, citando artistas como Luísa Mell e Reynaldo Gianecchini, que defendem a causa e fazem com que ela seja amplamente divulgada.
As novas gerações parecem rejeitar cada vez mais a moda passageira e impositiva, preferindo comprar de marcas sustentáveis e que se preocupam com as formas de produção. “A pandemia veio acelerar uma série de pautas que já estavam postas”, diz Renata Abranchs. “De um consumo responsável, consciente com as origens dos produtos. E da demanda por transparência, processos produtivos, políticas de inclusão, remuneração e impactos. É um caminho sem volta.”
Júlia Muniz teve essa preocupação com sua coleção de biquínis sustentáveis, criada a partir de materiais reciclados e recicláveis. “Antes de comprar qualquer coisa, verifico as embalagens, como produziram o produto, e sempre evito comprar de marcas ‘fast-fashion’ -porque essas marcas são terríveis para o meio ambiente e muitas vezes não oferecem o pagamento devido para os seus funcionários.”
Uma das embaixadoras do movimento #FeitoNoBrasil, a consultora Renata Abranchs afirma que vem crescendo um movimento de “boicote consciente” em todo o mundo, que abre espaço para uma forma mais orgânica de consumo e uma verdadeira transformação cultural.
“Não sou a favor do cancelamento. Sou a favor dessas empresas se redimirem, já que sabemos que essa é uma questão histórica. Pesquisas dos últimos anos mostram que os jovens estão achando a experiência do shopping muito entediante e parecida. Tem crescido o interesse em peças mais autorais, únicas. De ‘upcyling’, de brechós, ou até personalizaras -daí, a chamada ‘cultura maker’.”
Além disso, a valorização dos produtos locais também cresceu, diz Marcia Jorge. “Com a pandemia e a crise, nasceu uma necessidade global das comunidades se ajudarem.” Pequenos produtores e confecções ganham destaque, especialmente pela transparência sobre a origem das peças e pela inovação. “É uma tendência global ao consumo local. O fim da globalização, de fato, não existe, mas o incentivo ao consumo local cresce.”
A neutralidade das peças é um ponto-chave nesse aspecto. Com um consumo mais consciente, que foge das tendências passageiras, as cores neutras têm ganhado mais espaço, por sua atemporalidade. E a chegada do inverno só corrobora para o uso dos tons mais sóbrios.
“A peça precisa ser confortável, inteligente, fácil de combinar com o que você já tem”, diz Abranchs. “Então o apelo das cores mais neutras se faz necessário. É de máxima utilidade para fazer um intercâmbio com as peças que você já tem. E é possível usar como base tons de verde e azul, além dos clássicos branco, cáqui, marrom, e das combinações ‘black and white'”, completa.
A maior procura por esses tons, porém, não impossibilita o uso diversificado de estampas e cores. “Hoje está super na moda as estampas vintage e eu as amo também”, diz a modelo Júlia Muniz. “Compro o que eu amo e for meu estilo, e não foco muito na moda. Tenho vestidos estampados de marcas do Brasil que comprei há seis anos, e toda vez que uso aqui fora recebo muitos elogios.”
A analista de seguros Lisa Alarcon também é fã das peças mais coloridas e com estampas delicadas, além de listras e bordados discretos. Hoje, ela prioriza o conforto ante o design da peça. “Já comprei roupas só por serem bonitas, mas por não me sentir confortável com elas, acabei nunca usando.”
Expansão das compras online
A impossibilidade de sair de casa e provar roupas em lojas físicas impulsionou o comércio online. “Quem já tinha loja virtual tratou de aprimorar esse canal. E quem tinha só loja física, tratou de ir para o virtual. O que aconteceu é que as pessoas perderam a resistência de comprar pela internet, principalmente as com mais idade”, afirma a consultora de moda Marcia Jorge.
Um indicador do governo federal que passou a ser divulgado recentemente mostra que o país registrou R$ 23,9 bilhões de vendas com notas fiscais eletrônicas em junho. É a segunda vez que os dados são apresentados pela Receita Federal – não há série histórica. Os números refletem principalmente as vendas entre as empresas de médio e grande porte. Está incluído também o ecommerce –as vendas não presenciais de empresas para pessoas físicas.
Para a consultora Renata Abranchs, existe aí uma oportunidade para as lojas se reinventarem. “Enquanto houver pandemia, você não terá como experimentar roupas. E é muito complexo, porque não existe padronização de medidas no Brasil, levando à muitas trocas de peças com as lojas. Para quem cria moda, o desafio é aprender a criar peças ‘não trocáveis’, com tamanhos únicos ou personalizadas.”
A percepção entre executivos do setor de comércio é que novos consumidores de diferentes faixas etárias e de renda aderiram à facilidade de comprar pela internet –e as vendas digitais devem se firmar em patamares superiores aos do pré-Covid. O varejo chegou a registrar uma perda de 36% no faturamento durante a pandemia, e a queda só não foi mais profunda devido ao desempenho do e-commerce, avaliam especialistas do segmento.
Dados divulgados no final de julho pela Neotrust/Compre&Confie, empresa de inteligência de mercado, mostram que entre abril e junho, meses de pico do distanciamento, 5,7 milhões de clientes fizeram a primeira compra pela internet. Segundo a empresa, trata-se de uma aceleração em relação aos novos consumidores do segundo trimestre de 2019, período comparável. Naquele momento, 4,3 milhões aderiram ao comércio digital.
Abranchs diz ainda que houve uma transformação do design dos sites, essencial para que uma marca de roupas possa sobreviver nos próximos anos. Ela ressalta que sites mal desenhados e com atendimento precário têm grandes chances de perder potenciais clientes no e-commerce.
“É preciso melhorar a experiência, torná-la mais afetuosa e sinestésica, contando a história do produto. Esse carinho é uma busca do consumidor, e as marcas que não se prepararem estarão fora do mercado. Quem vende tem que ser mais consultor, mais terapeuta”, afirma.