A inteligência artificial melhora o trabalho dos juízes a tal ponto que, um dia, poderá até substituí-los, analisa o advogado Caio Cesar Rocha.
O ano é 2022. Em meio à disputa presidencial, pesquisadores brasileiros desenvolvem um programa de computador para tirar a prova sobre as 45 sentenças do ex-juiz Sergio Moro na Lava Jato. A máquina, dotada de inteligência artificial, é capaz de calcular o grau de isonomia das decisões e apontar aquelas que fogem ao padrão, consideradas mais tendenciosas. E aí, qual você acha que seria o resultado?
A história, evidentemente, é ficcional. Mas, acredite, ela é bem mais plausível que muita fake news. Hoje, já há tecnologia e conhecimento científico para conduzir esse tipo de experimento. Há três anos, testes similares foram elaborados por um grupo de cientistas da computação da Universidade College London, na Inglaterra. Eles criaram um juiz robô capaz de prever como seriam as sentenças de 584 processos da Corte Europeia de Direitos Humanos.
O supercomputador aprendeu o vocabulário jurídico e foi municiado com um banco de dados sobre as deliberações anteriores do tribunal. Também passou a codificar os argumentos de advogados, promotores e juízes. Por fim, passou a correlacionar os fatos descritos nos autos, as circunstâncias em que eles se deram e a legislação vigente. Resultado: acertou 79% das decisões.
Não se trata de um feito isolado. Em experiência anterior, cientistas do Chicago-Kent College of Law, do Instituto de Tecnologia de Illinois, criaram um software capaz de prever, com uma taxa de acerto de 70%, como se dariam as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos. Mas como isso é possível?
Basicamente, os supercérebros artificiais desenvolveram uma capacidade inigualável de compreender os padrões que regem os processos decisórios dos juízes humanos. Desvios de padrão, portanto, poderiam indicar os vieses dos julgadores em suas condenações. Por viés, aliás, entenda-se: sobrepor a aplicação da lei em um caso por, por exemplo, ativismo político ou ideológico, crença religiosa, preconceito, conflito de interesses, relação com uma das partes ou algum outro desvio de conduta.
Para prosseguir na nossa história ficcional – mas, diga-se, baseada em fatos reais –, o ministro da Justiça Sergio Moro, flagrado em conversas questionáveis com os procuradores da Lava Jato, poderia ter sua isenção contestada pelos algoritmos. Suas sentenças, então, seriam corrigidas. Ele não estaria sozinho nessa. O escrutínio digital valeria para todos os membros do Judiciário. Anos mais tarde, eles acabariam perdendo o emprego para os robôs. Já pensou?
Juiz robô x juiz humano
Segundo os pesquisadores dos estudos inglês e americano, os juízes robôs ainda não podem substituir um juiz humano. Os códigos legais, diferentemente dos códigos de computador, estão sujeitos a interpretações que variam conforme os fatos envolvidos num processo judicial.
Você certamente já ouviu a expressão “cada cabeça, uma sentença”. Pois é. Isso vale, principalmente, para casos com maior complexidade, em que as decisões se diferenciam pela sensibilidade, compreensão e conhecimento de quem julga.
O direito não é uma ciência exata. Trata-se de um saber em evolução constante, que acompanha mudanças sociais e na maneira como interpretamos questões morais e éticas. Requer certa flexibilidade de raciocínio que as máquinas ainda não mensuram. Deliberações que fogem ao padrão, portanto, poderiam não significar apenas má conduta, mas um tipo de interpretação legal mais inovadora e transigível.
O que pesa em favor delas, no entanto, é a possibilidade de eliminar os vieses e a parcialidade humanas. Essa busca é antiga. No final do século XVIII, os chamados codicistas acreditavam ser possível racionalizar as leis de tal maneira que os sistemas legais trariam hipóteses e soluções prévias capazes de resolver todo tipo de conflito. Porém, a complexidade das relações humanas acabou dando conta de esmagar essa utopia.
Agora, travestida por inovação tecnológica, a tese parece ganhar força novamente. Computadores já estão sendo empregados pelo Poder Judiciário de diferentes lugares. É o caso da Estônia. O país europeu está implementando um sistema informatizado para analisar disputas legais que envolvam menos de 7 mil euros. As partes em litígio enviam os documentos e o computador decide quem tem razão. A sentença pode ser revisada por um magistrado.
Nos Estados Unidos, economistas do National Bureau of Economic Research desenvolveram um algoritmo capaz de estimar o potencial de criminosos cometerem novos delitos enquanto aguardam seus julgamentos em liberdade condicional. O recurso se mostrou eficaz. Reduziu a reincidência em 25% e não aumentou a população carcerária. Na prática, o sistema se mostrou mais eficiente para avaliar riscos do que os juízes humanos.
Algo nesse sentido teria grande utilidade no Brasil. Atualmente, há 714 mil presidiários no país. Um terço dessa população é composta por gente que ainda não foi condenada, mas aguarda o julgamento encarcerada. Uma parcela significativa dessas pessoas poderia aguardar em liberdade sem oferecer riscos à sociedade e, por outro lado, sem entrar em contato com delinquentes mais perigosos nas cadeias. Segundo os estudiosos, isso reduziria o número de presos preventivos em até 40%. É o equivalente a 95 mil pessoas.
Mas até mesmo os robôs podem ser tendenciosos. Um exemplo disso também vem dos Estados Unidos. Outro sistema usado em diferentes estados americanos para avaliar os riscos de reincidência é acusado de perpetuar antigos preconceitos do sistema judicial. Ao contrário do programa do National Bureau of Economic Research, trata-se de um algoritmo pouco transparente, sem controle externo.
Robôs brasileiros
No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou em fevereiro a criação de um laboratório de inovação e de um centro de inteligência artificial. A ideia é desenvolver programas que facilitem o dia a dia da Justiça e acelerem o andamento dos processos. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possuem iniciativas similares. E algumas cortes estaduais, como as de Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Rondônia, também avançam.
Nesses casos, em geral, os robôs são usados para facilitar a vida dos juízes e descongestionar os tribunais. É o caso do Radar, criado pelo Tribunal de Justiça mineiro.O sistema congrega 5,5 milhões de processos e permite aos magistrados verificar casos repetitivos nas comarcas, agrupá-los e julgá-los conjuntamente a partir de uma ação normatizada.
O próximo passo seria eliminar a necessidade das decisões partirem apenas do magistrado. Como no exemplo estoniano, a inteligência artificial poderia ser empregada nos tribunais brasileiros para resolver querelas menores e menos complexas.
Em áreas onde há expressivo aumento da judicialização, como na saúde, onde se registrou um aumento de 130% no número de demandas em dez anos, os algoritmos se encarregariam de definir sentenças em larga escala, rapidamente. Tudo, claro, com a supervisão dos juízes.
São muitos os caminhos a serem seguidos. Na maioria dos casos, tratam-se de opções vantajosas. Robôs reduzem o tempo de trâmite de processos, auxiliam o trabalho dos juízes, podem substituí-los em questões mais simples, tornam a Justiça mais previsível, reduzem os custos e corrigem erros humanos. Tudo isso com o benefício de não trocarem mensagens com as partes envolvidas no processo, nem pleitearem cargo no Supremo.
Por Caio Cesar. Fonte: Migalhas.
Quem é Caio Cesar Rocha
Caio Cesar Rocha é advogado, jurista e especialista em arbitragem.
Nascido em Fortaleza, é mestre e doutor, respectivamente, pelas Universidade Federal do Ceará e Universidade de São Paulo. Em 2014, concluiu seu pós-doutorado pela Columbia Law School, em Nova York, com foco em arbitragem. É autor do livro Pedido de Suspensão de Decisões Contra o Poder.
Originado durante o mestrado, a obra tece uma análise processual e constitucional do instituto do pedido de suspensão de decisões contra o poder público e traça sua evolução histórica em meio às intensas reformas processuais pelas quais o Brasil passou recentemente.
Caio Cesar Rocha também foi integrante da comissão especial do Senado, presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, e criada para reformar a Lei de Arbitragem, ao lado de alguns dos principais juristas brasileiros, como a ex-ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Ellen Gracie, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Walton Alencar Rodrigues, e os advogados Francisco Antunes Maciel Müssnich e José Rogério Cruz e Tucci. Dois anos depois, a lei 13.129/15 foi aprovada, consolidou práticas já usadas pelos profissionais do meio e deu mais segurança jurídica para as decisões de arbitragens. O advogado também especializou-se em direito esportivo e já atuou como auditor e presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).
Na Confederação Sulamericana de Futebol (Conmebol), Rocha presidiu o Tribunal de Disciplina. E na Federação Internacional de Futebol (FIFA), o advogado foi membro da Câmara de Resoluções de Disputas. No Senado Federal, Caio Cesar Rocha também presidiu a comissão de juristas responsável pelo anteprojeto da Lei Geral do Desporto Brasileiro.